segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Algumas anotações sobre transe

Eu tinha onze anos quando comecei a praticar meditação.

Não sabia que aquilo que eu fazia tão naturalmente tinha um nome. Me lembro de ter cinco ou seis anos de idade e minha avó sentar na beira da minha cama para eu rezar e dormir, e das palavras dela eu não lembro, mas lembro de entrar em um estado de vigília onde a visão parecia coberta de nuvens e onde eu podia sentar e ouvir ensinamentos daqueles para quem eu orava como se não estivesse mais no meu corpo.

Quando pequena, eu gostava de girar e girar e girar no meio das árvores, até ficar bem tonta, então me jogava no chão no meio das árvores, e via o céu mudar de cor e as árvores dançando. Hoje vejo meu filho repetindo o mesmo ato e penso que preciso passar mais tempo com ele entre as árvores - e que bom que ele tem alguém para dizer a ele o que é isso tudo que ele vê.

O fato é que com onze anos eu comecei a praticar meditação e um dos motivos disso era conseguir dominar esse processo. Me aterrar e focar de forma a não fazer isso sem intenção. Meditava todos os dias e com isso conseguia um controle bem melhor.

Até hoje, eu tenho uma facilidade para o transe que pode parecer uma coisa ótima - e seria, em uma sociedade onde eu pudesse ocupar o nicho social de que essa é minha função na comunidade - e onde assim sempre houvesse alguém capaz de me puxar de volta quando fosse preciso.

Na faculdade, ensinei um amigo a como me trazer de volta, porque era muito comum que durante uma aula mais intensa que eu mergulhasse dentro de mim e saísse por completo da realidade consensual. Ele, com quem tenho uma conexão profunda e natural, mesmo que hoje não possamos nos ver mais, foi a pessoa que aprendeu a fazer isso com mais gentileza até hoje. Por termos essa conexão intensa, ele conseguia perceber que algo estava acontecendo, e chamar meu nome em um certo tom que me trás de volta. Meu companheiro aprendeu por instinto, mas o "latido" do coiote me trás de volta em um baque que não é lá o mais confortável - mas funciona.

O som tem um papel fundamental nesse meu caminho de volta.

Mas com onze anos eu não sabia que isso tinha nome - transe- não sabia que meu caminho espiritual envolvia a jornada e o transe, não sabia que não precisava ter medo da sensação de beatitude que transformava meu pensamento em nuvens. Só o que eu sabia é que nunca era capaz de terminar de rezar o terço, mas me encontrava depois, respirando produnda e calmamente, o terço solto na mão, sem saber quanto tempo tinha passado.

Quando rompi com o cristianismo - fiz as pazes com isso muito depois, mas não foi uma saída fácil, era um momento de desconforto e trauma e perda de um pedaço da minha alma que só consegui resgatar três anos atrás- eu passei por um processo de busca que me levou na direção do oriente. Não sabia o que era ainda. Descobri Lobo. Fugi do caminho xamânico com todas as pernas que eu tinha. E desta vez, eu começava a caminhar sem rumo e quando me dava conta, não sabia como tinha chegado a um lugar, em um processo sem controle algum, onde eu podia cair no transe enquanto andava na rua. Estive muito perto da loucura.


A loucura é uma porta perigosa quando se trilha um caminho que presume sempre estar no limiar. Ela está ali, tentando morder o fundo da mente. Nem todo louco é um xamã - mas muitos são pessoas que estavam nesse processo e caíram.



Gostaria de poder dizer que dominei o processo. Mas seria mentira e aqui não há espaço para a mentira.

Dominei o processo de impedir que isso me tome por completo quando preciso evitar - na maioria das vezes. Água fria, um cigarro, certos movimentos e um segurar energias. Algumas vezes, ajuda se eu provocar uma dor, apertando um nervo por exemplo. As vezes fico estragada o resto do dia, até poder sentar e meditar e permitir o processo do transe aflorar em um espaço controlado. As vezes, dormir ou chorar ajuda.

Permitir que seu corpo seja usado por um espírito é uma das facetas do transe. A jornada é outro. E existe também um espaço dentro do transe que é um esvaziamento da forma, onde existe uma comunhão com o meio e a consciência se dissolve e tudo que fica é o compartilhamento.

Uma das coisas que me incomoda no paganismo atual é que não é dado o devido espaço a esse processo. E mesmo na umbanda, que é uma religião de transe, muitas casas não dão a atenção devida e deixam o médium "por sua conta e risco". Sim, existem pessoas como eu, que tem esse processo como algo muito simples - mas mesmo assim, eu tive o auxílio de uma médium experiente que me orientou a como bloquear isso se preciso e como impor limites quando em contato com certos espíritos e como poupar minha energia, e isso fez uma enorme diferença. Não se pode negar a possibilidade, e não se pode deixar o boi solto - os dois extremos que vejo.

A verdade é que ainda temos uma sociedade eurocêntrica onde o transe é visto como coisa de gente primitiva e inferior. Primitivo, sim - primordial e primeiro, não a visão pejorativa que se tem dessa palavra.Transe é tabu, infelizmente.

Tanto que muito mais se usa a palavra estado alterado de consciência. Eu gosto de transe. É uma palavra curta, e os estados alterados de consciência abarcam muito mais do que só esse aspecto.

Não tenho nenhuma conclusão bonita. Só queria deixar aqui anotado esse processo de como é que o transe se dá para mim.